14 de julho de 2020

nota_223: Ficção em família


“Perfurei você no momento mais lúcido da minha vida. E só lamento uma coisa. Eu queria mesmo tê-lo enforcado.” É assim que termina um dos melhores contos de Fabiano Costa Coelho no livro _Minha mãe e outras mulheres_ (Confraria do Vento, 2017). É um livro multifacetado, com poemas e contos de vários vernizes, de ficção científica a exercícios estilísticos ora pomposos ora modernos, e com muitas temáticas, tendo como temática predominante o sexo. Muito, muito sexo. Mas isto, para quem conhece este autor de sobrenome Coelho, já era de se esperar. Eu vou lhe explicar.

Quando você lê ficção, principalmente se você também escreve, você tem aquela vontade, às vezes pouco moderada, de saber de onde vem _aquilo_ que está lendo? O que levou a pessoa que escreveu a colocar _aquilo_, _daquele_ jeito, sobre o papel? A pessoa que escreve está sujeita a todas as suas vivências, à sua época, ao seu contexto e é na combinação destes elementos todos que está a origem dos seus temas. Como estes temas depois serão trabalhados na obra é que é o trabalho do artista.

Podemos dizer também, acenando à psicanálise, que a maneira como aqueles temas serão reelaborados ou contraelaborados numa obra de ficção, ou em qualquer obra artística, é que fará a obra ter mais ou menos apelo. Há esta química entre a obra e quem a aprecia que é incitada pelo quanto da pessoa criadora a obra está impregnada. É a esta humanidade na qual a obra embebida que nos conectamos. _Aquilo_ da vida da pessoa que cria é transformado _naquilo_ que vemos e apreciamos na obra — desde que esta obra ganhe vida com alguma técnica atraente. É claro que, para apreciar a mágica, não é necessário saber se o coelho já estava na cartola antes do espetáculo começar, o truque vale pelo truque; mas conhecimento é sempre bom e entender por que se usa um coelho e não um gato é uma grande epifania — para quem gosta de mistérios óbvios.

Quando se conhece o autor e com ele se compartilha de alguns trau… Algumas vivências. Quando se conhece o autor e com ele se compartilha algumas vivências, apreciar a obra dele, no caso, ler o livro dele é como ter a falsa segurança de que se conhece _aquilo_ na obra já reelaborado pelo processo criativo. Ainda na falsa suposição de segurança, é como ver o mágico realizando o truque, perceber o quão crível é a encenação e, ao mesmo tempo, achar que enxerga todas as engrenagens por traz da ilusão.

É muito mais fácil ler a obra de quem não conhecemos intimamente. Antes de retornar ao livro de Fabiano Costa Coelho, aí vai o contexto que você precisa. 



Eu e o autor somos primos. Eu, Guilherme filho de Guilherme. Ele, Fabiano filho de Fábio. Ambos somos pernambucanos. Eu, recifense de Casa Amarela. Ele, jaboatonense de Piedade. Nossos pais tiveram um grupo teatral histórico em Olinda, Pernambuco, chamado Vivencial Diversiones. O pai dele, bailarino, era o coreógrafo. Meu pai, o diretor do grupo. Ambos também eram atores. Atrizes no mesmo grupo também foram nossas mães. O filme _Tatuagem_ (2013), de Hilton Lacerda, é baseado neste grupo. Irandhir Santos interpreta Clécio, que é inspirado no meu pai. Sylvia Prado interpreta Deusa, que é o amalgama de nossas mães. Há uma criança no filme, num personagem chamado “Tuca”, um menino que é a junção das crianças disponíveis à época, eu e minha irmã Juliana. Foi neste teatro que nasci. É sobre este teatro que converso com meu pai. Foram as histórias deste teatro que ouvi da minha mãe, sobretudo quando ela, Juraci, deixou os palcos. A mãe de Fabiano, Suzana, continuou atriz até hoje, uma tia que adoro demais. Eu e meu primo não tivemos o tanto de convívio que eu queria quando éramos crianças. Mas era sempre muito frenético quando nos encontrávamos e temos muitas histórias para contar. Ele era meu ídolo, meu "primo rico”, que morava na praia, conhecia os Estados Unidos e tinha um Master System II. Quando jovens adultos, no início dos anos 2000, já em Brasília, passamos a conviver mais. Moramos sob o mesmo teto, na casa de uma tia, em momentos muitos distintos das nossas jornadas pessoais. O humor pernambucano, o amor pela literatura e uma inesperada cinofilia eram as coisas que então tínhamos em comum. Mais em comum. Poucos anos depois, a inexorável vida adulta fez a parte dela e nosso convívio ficou mais raro, mas não menos afetuoso. Hoje, nos vemos uma ou duas vezes ao ano.

Aí está, em resumo, o vínculo histórico e familiar que alterou a maneira como enxergo o livro de Fabiano. Antes, este vínculo me impedia de escrever sobre Minha mãe e outras mulheres, por dificultar que eu tenha o distanciamento necessário para comentar a obra de outro escritor. O tal _aquilo_ que mencionei, a tal humanidade a que nos conectamos em contato com a obra, já vinha acompanhado de memórias que eu mesmo vivi. Quando li o livro pela primeira vez, tudo — ou quase tudo — o que eu via eram pedaços da vida do meu primo, suas questões familiares, a presença da avó, o convívio com o padrasto, o amor à mãe, tudo isso transformado em arte. No entanto, diante da impossibilidade de dissociar o autor da obra, sobretudo por compartilhar algumas vivências com ele, agora é o mesmo vínculo que me faz escrever sobre a obra dele, porque é a partir deste vínculo que escrevo.

Bem, aqui eu lhe peço que relembre a analogia com um número de mágica: apreciar o truque, perceber a encenação, enxergar as engrenagens. Eu não consigo ignorar as engrenagens que acredito ver por trás da obra.

O autor é uma pessoa muito teatral. Digo, muito histriônica. Há no livro o conto “Margareth”, encenado pelo próprio autor neste vídeo: veja para entender do que falo. Eu não consegui ler os demais contos sem imaginar o próprio Fabiano os encenando para mim. A extroversão sempre foi uma das características mais marcantes do autor, que, além de ter um talento nato para a comédia, é um exímio passista de frevo de intelecto privilegiado. Esta extroversão, embora natural, ajuda a maquiar outra característica dos homens Coelho, que é uma fragilidade infantil que perdurou até a vida adulta. Eu, ele, nossos pais, meu irmão, todos em alguma medida temos esta característica; ou a mim esta característica parece evidente, já que a percebo sob a ótica da intimidade familiar. Também é uma característica que exige um uso reforçado de máscaras sociais. Todos nós as usamos, eu sei, mas algumas máscaras são mais grossas que outras, como escudos para impedir as investidas do mundo contra feridas que não sararam direito, se é que um dia saram. Outras máscaras são mais chamativas, extravagantes, para também levar a atenção do mundo para longe de onde ainda dói. Toda a teatralidade natural do meu primo me fez ver onde estiveram (estão ainda? Estavam?) as dores que ele carrega nos seus contos.

Sexo (bastante), abandono, racismo, presença materna, memória — são os temas recorrentes nos contos de _Minha mãe e outras mulheres_. No conto “Iago”, um homem de programa fala de educação sentimental e empreendedorismo. Em “Emília", um heteronormativo usa a verdade para iludir e levar Emília para uma “trepada ciclópica”. “Fina Arte”, um breve manual de como apreciar melhor a atividade sexual dos vizinhos (é bem divertido). “O Trem”, um bem elaborado relato de abandono. “Casa da Árvore”, um excelente truque literário sobre traumas. Há também investidas em ficção científica e os poemas, a maioria relacionada àqueles temas. Eu consigo ver o meu primo através do livro, às vezes de forma explícita, mas no mais das vezes de forma reelaborada. Sei, no entanto, que seria difícil ver Fabiano no livro para quem não o conhece.

Ainda preciso falar de dois contos. Um deles é “Infanta, por ela mesma”. É deste conto que vêm as palavras com que comecei este texto. A narradora se expõe em vingança à memória do marido opressor já morto. Uma narrativa muito carregada, pesada. O outro conto é “Soldadinho”, o mais longo do livro e no qual é possível ver várias partes da história do meu primo. Ambas as narrativas estão recheadas de elementos que já conheço nos bastidores; porém, ambas as narrativas valem por si mesmas independente do que se saiba da vida do autor (e é para ser sempre assim, inclusive). Estes dois contos, da maneira como foram escritos, foram os que mais me ligaram à humanidade neles exposta. Esta é uma das coisas que a literatura proporciona, a conexão. Espero que você sinta o mesmo durante a leitura, com o inevitável distanciamento ou desconhecimento da vida do autor. Eu mesmo não posso falar de outra forma e foi um grande desafio ler a ficção de uma pessoa que eu amo e julgo conhecer bem. As verdades gritam sem parar, mesmo sob máscaras.

26 de junho de 2020

nota_222: Estela sem Deus

Publiquei primeiro no Posfácio.

“Desconfiei de que aquilo que minha mãe fazia, nunca parar a vida por causa do pranto, era uma espécie de milagre”, diz Estela, a protagonista do romance Estela sem Deus, de Jeferson Tenório, escritor radicado no Rio Grande do Sul. O romance em primeira pessoa, de 206 páginas, é a história da adolescente Estela, gaúcha, que migra para o Rio de Janeiro um pouco antes das eleições de 1989. Conhecendo o Brasil que existiu de Collor a Bolsonaro, um suposto decolar democrático para uma aterrissagem proto-fascista, o livro de Tenório é sintomático não só para o Brasil de hoje como para o de sempre, infelizmente.

A narrativa de Estela começa em algum ponto da infância e vai até o final da adolescência, contando como Estela reage à sequência de violências e desamparos a que ela, a mãe e o irmão são submetidos. Para todos esses acontecimentos, Estela oferece uma postura questionadora e pensativa, não de quem sabe ou pressente o que virá depois, mas de quem desconhece de fato o que lhe acontece e, ao mesmo tempo, pode contar com um mecanismo inato de avaliação. Como na cena acima, na qual (evitarei spoilers de qualquer natureza) vê sua mãe seguindo em frente após um revés. O milagre que Estela atribui à força da mãe também pode ser conferido à própria percepção arguta que a garota tem da vida.

Numa das primeiras passagens do livro, Estela é apresentada à morte. A avó e o irmão, Augusto, a acompanhavam neste encontro. À avó, ela pergunta “o que acontece durante morte”, ao que a avó responde que “na morte, não há um durante, apenas um estar e não estar vivo”. Estela seria apresentada à morte mais vezes durante a narrativa, sempre protegida por este escudo reflexivo (e não refletidor). Querer ver o durante da morte é um dos traços mais marcantes da psicologia da personagem, que perscruta todos os acontecimentos da sua vida jovem de forma inédita para si mesma e sem necessariamente se impressionar com este… “dom”. É este dom que a faz sobrepujar os temas que se repetem no livro. Estela é apresentada à violência, ao desamparo, à fé e à resignação e em todos estes encontros, por mais que pareça sucumbir, ela pode contar com esta capacidade de pensamento que lhe é própria.

Às vezes, durante a leitura, é como se Estela fosse uma chama pequena e recalcitrante, sobrevivendo a uma série de soterramentos. Esta impressão é acentuada pela maneira como Tenório criou a voz de Estela: ela narra sua história de forma simples e sensível, sem grandes acrobacias filosóficas, por mais agudos que sejam os questionamentos da filósofa Estela. É uma leitura altamente recomendável para adolescentes sobre uma heroína adolescente.

Estela tem um irmão, Augusto. No início, ambos parecem ter este tino inabalável do pensamento, uma arma que precisariam usar para lidar com as adversidades a que são apresentados. No entanto, ao encontrarem um desamparo, Augusto, que até então se assemelhava à irmã nas habilidades filosóficas e dela se distanciava no quesito humor (ele é o engraçado da dupla, mesmo que a irmã o considere um “babaca”, quase sempre com razão), Augusto cede ao ópio comum dos desamparados, a religião, de forma irreversível (até onde é possível saber). O mesmo menino que numa zuêra implicante já apresenta uma leitura do mundo inevitavelmente precoce e perspicaz, quando brinca com a irmã dizendo que nunca viu uma “filósofa preta”, sucumbe à anestesia da religião. Ou ao conforto da religião, porque algum conforto é preciso.

Por outro lado, Estela, mesmo que sob a influência aparente do divino, que é quando convive de perto com a religião, não esconde de si mesma o que pensa sobre Deus. Tendo já olhado uma das piores faces do homem, Estela descobre "que Deus [também] era minha mãe segurando uma faca”.

A personagem é uma das tantas filósofas engolfadas pela opressão racista e aporofóbica. "Nunca parar a vida por causa do pranto era uma espécie de milagre”: a própria Estela é um milagre.


Estela sem Deus
Jeferson Tenório
Editora Zouk
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, 2018.

24 de junho de 2020

nota_221: A construção da paisagem


A umidade do ar é famosa, atingindo percentuais inclementes para quem nunca visitou um deserto. Árvores de troncos retorcidos, de cascas grossas e de folhas peludas saem do solo tentando vencer a gravidade, mas se contorcem de tal forma que é como se o calor as empurrasse novamente em direção ao chão. O vermelho da terra é onipresente, acrescentando uma dose de drama por todo o canto, como se a temperatura fustigasse a terra a ponto de ela sangrar. Aqui, no cerrado, não há a densidade da mata úmida, escura, como uma floresta de ameaçadora saída de um romance de Jack London, ou como uma testemunha em transe imemorial, como vista numa novela de Joseph Conrad.

Olha, o cerrado é diferente. A flora se compadece de nós. As árvores baixas, secas e cascudas reproduzem nosso próprio gestual de estafa sob este clima seco. São nossas companheiras de jornada nesse drama climático. Árvores e arbustos que já parecem cansados ao amanhecer, ao meio-dia se assemelham a famélicos rastejando em busca de abrigo, ao entardecer são severinos esgotados, tais como os candangos que vieram para cá há sessenta anos, e à noite se petrificam, desalmadas, sob a luz do céu noturno.

A deficiência nutricional de um solo com excesso de alumínio, a frequência dos incêndios e um escleromorfismo não-sei-o-quê são os responsáveis por produzir esta flora (ou uma combinação de elementos semelhante a esta, a partir do que lembro do ensino fundamental). Em fotos, os galhos retorcidos de um embiriçu sem folhas ou o tronco encouraçado e protuberante de um pequizeiro, especialmente quando à luz dura e implacável do meio-dia, contam uma história de açoitamento diário, do qual estas árvores saem tão laceradas quanto elegantes. O cerrado savânico, aos olhos de um fotógrafo, é uma multidão de arbustos estáticos, estóicos, indiferentes à secura, aos fogos e às chuvas. Um biólogo explicaria essa paisagem de outra forma, seguindo os rigores da ciência, explicando o quão integrado ao bioma cada um dos seus elementos naturais está, mas eu mesmo tenho vontade de chegar perto de uma caliandra e, sentindo todo o vermelho dos estames dela penetrando na minha retina, falar: “Você, tão delicada, enfrenta os castigos deste clima com muita elegância. Posso fazer uma foto sua?”

Foi esta paisagem bruta e milenar que viu, impávida, um colosso de concreto, piche e tijolos ser construído ao longo de quase quatro anos: Brasília. A capital de um país construída no meio do nada. Um feito de engenharia tão inacreditável quanto desumano. Como foi para os mercúrios-do-campo sobreviveventes à terraplanagem olhar os anexos do Congresso Nacional, torres gêmeas e impossivelmente retas tocando o céu sem nuvens? Num piscar de olhos em termos geológicos, uma nova paisagem foi construída, repleta de linhas e ângulos e volumes irreais, jamais vistos na natureza. Hoje, novas volumetrias compõem esta paisagem, mesmo que nem sempre haja harmonia entre o naturalmente formado e o construído por humanos (retornaremos a este ponto em alguns instantes).

Há a paisagem de um lugar e há recortes desta paisagem que compõem a memória e a identidade do tal lugar. Por exemplo, imagens de araucárias têm um lugar afetivo para os paranaenses, que fizeram desta árvore um dos seus elementos identitários. Decalques de araucárias são comuns na linguagem visual de padarias, postos de gasolina, hotéis e hotéis fazenda, farmácias, escolas e de toda sorte de estabelecimentos que compõem o cotidiano da “Rússia Brasileira” (araucárias também são motivos recorrentes nos famosos _centros de tradição gaúcha_, os CTG’s, agremiações populares em toda a região sul do país). Por todo o estado do Paraná, troncos com até cinquenta metros de altura ostentando copas em formato de candelabro — eu sempre me impressiono ao ver uma araucária.



A mesma relação entre paisagem e identidade que há entre paranaenses e araucárias também existe entre cariocas e o Pão de Açúcar e demais rochedos, pedras em torno das quais o coletivo humano se espalhou e aos quais se adaptou. Esta, uma relação entre paisagem e identidade já há mais tempo familiar aos brasileiros. Ocorrem à memória outros exemplos, como o do cedro aos libaneses, que o têm na bandeira nacional, ou a folha de samambaia aos neozelandeses, a bandeira não-oficial do país, símbolo dos All Blacks, a poderosa seleção nacional de rugby. Araucárias, rochas, cedros, samambaias — elementos de paisagem que são repositório de memórias, coletivas e individuais, e signos de identidade.

Para o brasiliense, também há elementos de paisagem que formam a memória afetiva local. Um deles, o primeiro dos três que vou mencionar, é o céu, ouvido em todo tipo de canções e rotineiramente mesmerizante para os habitantes do planalto central. De muitos pontos da cidade, é possível ter 360 graus de abóbada celeste, um luxo visual, sem dúvida. Duas vezes por dia, quando o sol nasce e quando se põe, o habitante da capital federal é premiado com espetáculos multicoloridos; e entre o alvorecer e o anoitecer, durante a estiagem, uma imensidão azul sem nuvens cobre o cerrado. Esta abóbada celeste, este “céu de brigadeiro” irretocável, comporia o domo perfeito dos terraplanistas mais fetichistas.

O segundo elemento paisagístico que compõe o patrimônio imagético do brasiliense, e vou usar esta palavra no singular para simplificar a redação, é o _prédio_. Sabe os exemplos anteriores que citei, as araucárias para o Paraná e a folha da samambaia para a Nova Zelandia? Pois para o brasiliense os personagens de paisagem presentes em todo lugar são prédios. O Congresso Nacional, a Ponte JK, a Torre de TV, a Torre de TV Digital, a Catedral Metropolitana, o Palácio da Alvorada, o Museu da República — estas e outras arquiteturas compõem a identidade paisagística local e são usados na linguagem visual de quase _tudo_: de escolas a motéis, de padarias a boates, de bares a centros religiosos, etc. São também os cenários recorrentes de editoriais de moda, _books_ de noivos, chamadas jornalísticas. São os pontos turísticos _naturais_ da cidade, e usar a palavra “naturais" aqui faz todo o sentido; são também o patrimônio estético da cidade e, ao mesmo tempo, sua própria identidade. O que a arquitetura representa para a capital federal, e para a nossa própria cultura brasileira, é matéria para outra crônica. Mas ela se relaciona com o nosso terceiro elemento, que é o nosso assunto: o canteiro de obras.

Um formigueiro humano foi transportado para o planalto central para fabricar esta paisagem e deste acontecimento surgiram imagens que fazem parte da cultura brasiliense. As fotografias da construção de Brasília têm aquele encanto das grandes mobilizações humanas, o que de fato foi. A construção da nova capital federal envolveu todos os tipos de engenharias, artimanhas e propagandas, e nestas podemos incluir o uso de algumas palavras de Dom Bosco, transformadas em profecias e utilizadas para atrair os trabalhadores braçais que de fato ergueriam a cidade, cognominados “candangos”. Todo o espírito daquela falsa utopia estava muito mais sintetizado nas imagens dos canteiros de obras do que em quaisquer discursos que Augusto Frederico Schimdt tenha escrito para Juscelino Kubitschek. Naqueles canteiros, brasileiros necessitados, iludidos e cheios de esperança tentavam construir algum futuro.

Brasília é uma das poucas capitais mundiais (a única?) a ter registros de sua concepção, o projeto do “Plano Piloto" feito por Lúcio Costa; de sua gestação, as imagens dos canteiros e da construção; e do seu parto, as da sua inauguração. Como fotógrafo, dentre estas imagens sempre me atraíram mais as dos canteiros. Aqui cabe falar bem pouquinho sobre o fazer fotográfico.

Todo fotógrafo tem seu próprio evangelho para fazer seus cliques. Isto é o tal _olhar_. O olhar de cada um, a razão por que dois fotógrafos jamais conseguiriam fazer fotos idênticas, mesmo que com o mesmo equipamento, sob as mesmas condições e ao mesmo tempo. Um porquê com frequência inefável. Tudo o que vivemos (tendo ou não digerido as vivências) até o momento de pressionar o disparador conta como seu evangelho pessoal, transmutado, ao momento do clique, na escolha de fotografar aquele determinado sujeito, com aquela intenção e daquela maneira, de acordo com todo o conhecimento técnico dominado naquele instante. Há também a projeção. Fotografar é projetar-se. Há algo em quem opera a câmera que passa através da lente e atinge o sujeito fotografado, e o mesmo algo retorna atravessando a lente e penetra no fotógrafo, traçando uma lemniscata entre os dois extremos da lente. A escolha do assunto a ser fotografado já é ditada por esta projeção. Para quem escreve e fotografa, há um paradoxo ao comparar as duas formas de expressão: são idênticas, mas uma não substitui a outra. Este texto é uma tentativa de juntá-las, ao tratar da construção de uma nova paisagem (retomando o que indiquei no quarto parágrafo).

Brasília não é uma cidade para flanar. A borboleta (e não avião) desenhada por Lúcio Costa é extensa de menos para carros e de mais para caminhantes. Somado às dimensões da cidade, excruciantes para o _flaneur_, há o problema da mobilidade urbana: a capital federal é péssima nisso. Brasília é um museu ao ar livre para ser visitado de carro, cobrindo longas distâncias para apreciar cada obra de arte permanentemente exposta: assim a vê quem é fotógrafo de paisagens e estruturas e amantes praticantes ou apenas amantes de arquitetura. Desta forma, podendo ignorar a (falta de) mobilidade, a experiência visual de Brasília é outra. Não consigo abrir mão da metáfora do _museu ao ar livre_, por mais batida que seja. O fotógrafo-cronista se desloca muito de uma obra à outra, sempre impressionado com a adequação de cada prédio ao seu respectivo contexto — e aqui peço que compare o prédio e seu contexto à já mencionada caliandra e seu hábitat. “Posso fazer uma foto sua?”

Um punhado de artistas assinaram as obras aqui expostas, Oscar Niemeyer sendo o mais famoso deles. Mas há também João Filgueiras Neto (“Lelé”), Rodrigo Brotero Lefèvre, Mayumi Watanabe e outros que deixarei de citar mesmo ao risco de ser injusto. Estes nomes assinam obras já incrustadas sobre o planalto central, obras prontas e acabadas, resistindo ao tempo e ao clima e que estão ao alcance das lentes de todos nós. A perenidade da obra arquitetônica é um dos seus aspectos mais fascinantes. Poder construir algo que irá alterar a paisagem “para sempre”? É uma responsabilidade descomunal, visto que a paisagem é um bem comum e as construções erigidas sobre ela farão parte das vidas das pessoas de incontáveis formas, assim como o fazem os naturais rochedos e cedros e araucárias sobre os quais já conversamos. Respeito os saberes do arquiteto, que precisa ter conhecimento técnico, consciência ecológica e apuro estético — resumindo um leque tão amplo de conhecimentos em apenas estes três, estou me dedicando mais ao terceiro, que é o ressaltado pelas fotos. O apuro estético é o que veste a obra e é como ela se apresenta, todos os dias, ao mundo. Ele compõe a paisagem. Como seria, então, documentar a construção de uma nova paisagem?

Acompanho a construção de um templo, projetado por um escritório brasiliense que tem como referências criadoras o grandioso Tadao Ando, o referido Lelé e o laureado Paulo Mendes da Rocha. O primeiro, um mestre minimalista, sobretudo na construção de igrejas; os dois últimos, nossos melhores arquitetos de traços brutalistas. Três influências palpáveis na concepção do templo em questão, que levou a sério o conceito de “paisagem construída”. Por se tratar da construção de um templo, a perenidade aqui é mais, digamos, perene. Veja, casas são demolidas, mas um templo raramente o é, sobretudo quando falamos de um templo feito para adorar a uma das religiões abraâmicas. Este templo, esta igreja, estará aqui virtualmente _para sempre_. Um dia, quando estiver pronto, este templo guardará a mesma relação que araucárias e caliandras têm com seus arredores. Entretanto, enquanto escrevo este texto e fotografo o seu canteiro de obras, o templo é um processo. Considerando o processo uma coisa em si mesma, é engraçado pensar que para erigir uma coisa que durará para sempre é necessário fazer outra que é finita em cada uma de suas partes, por menores que sejam. Quando pronto, o templo terá uma vida própria, habitado por fiéis, fustigado pelo clima e acariciado pelos astros. Mas até lá, cada etapa de sua construção é efêmera. Daí vem mais uma vez o fascínio pelas fotografias de construção, a única maneira de eternizar a efemeridade do processo de construir. As memórias dos que empregaram os próprios músculos usando pás e enxadas são deles mesmos; já as fotografias estão para todos.

Fotografia é projeção. Fotografar uma construção pode ser este apetite de assegurar o que nos escapa a todo instante, esse _eu_ que construímos ininterruptamente e que em algum momento, quando estiver pronto — morto — fará parte da paisagem sentida pelos outros.

22 de novembro de 2016

nota_218: Super Likes para Chris Cornell



Tinder, energéticos, pachorra e punch na primeira turnê interestadual da banda cover Florence Tribute Brasil

PARTE I


Alex tem um problema

“Não, essa aqui é feia”, ele disse, para si mesmo, pensativo e um pouco tenso. Eram quase nove horas da manhã e estávamos no Aeroporto Internacional de Guarulhos, esperando nossa conexão para Maringá, a cidade canção no norte do Paraná, onde pousaríamos para a primeira turnê interestadual do projeto Florence Tribute Brasil. Que é uma banda cover da inglesa Florence + The Machine que não só homenageia como melhora as músicas do conjunto londrino, dando mais punch às canções originais. “Essa aqui! O que vocês acham dessa aqui?”, e ele nos mostrou a foto da moça no celular, que recebeu a aprovação dos presentes e um like dele. “Michele vai ser minha consultora”, ele disse, exibindo outras candidatas ao crivo da colega. “Ah, essa aqui eu não escolhi, não. Foi o Arnoldo”, ele comentou, rindo, entregando que esta mesma terceirização já havia sido feita a outro. “Eu fico com as mulheres que ele escolhe”, disse, e riu inocente, se é que este contexto permite inocências. Uma dezena de super likes recebidos era a contagem àquele momento.



Administrar likes e super likes no Tinder, no entanto, era o menor dos problemas do guitarrista Alex. Além de guitarrista, ele é o produtor da banda e foi quem agenciou esta turnê pelo Paraná. Naquele momento, em Guarulhos, a maior preocupação dele era providenciar um baixista. Quase duas horas antes, nós saímos do Aeroporto Internacional de Brasília com um a menos na escalação. Nada de Iano, o tal baixista. Parte indispensável da “cozinha” (baixo e bateria), Iano não havia aparecido para o embarque e estava incomunicável. Bad vibes para uma primeira turnê. Alex tinha um problema e péssimas perspectivas para resolvê-lo. Aliás, mesmo que o resolvesse, o estrago seria incontornável.
Formada há um ano, a Florence Tribute Brasil, além dos mencionados Alex e Iano, tem Arnoldo, na bateria, e Michele, nos vocais. Nenhum deles chegou ontem à música. Os quatro têm por volta de trinta anos e todos estão envolvidos com seus instrumentos há quase duas décadas. Ou mais, como é o caso da vocalista, que basicamente nasceu fazendo cosplay de Rosanah Fienngo em “O Amor e o Poder” — e cantava em missas desde os oito anos.

Antes que eu prossiga, preciso revelar que esses caras são meus amigos e Michele é minha namorada, mas vou usar a terceira pessoa quando me referir a ela com o namorado (porque sim). Hunter Thompson acharia ridícula essa postura, mas Gay Talese não. Prefiro Talese. Não sei se continuarei tendo essa namorada e esses amigos depois do que escrevi aqui, uma dúvida da qual Truman Capote riria, mas estou pagando pra ver. Voltemos aos rockstars.

Todos esses músicos têm projetos paralelos. Alguns autorais, como a Etno do baixista e a Trampa do baterista, excelentes bandas que mantêm a tradição brasiliense no rock; outros experimentais, como a Heat, deste mesmo elenco, mas com o acréscimo de outros guitarristas e com Alex nos vocais, um homem de talentos que vão além do Tinder. Alguns deles vivem exclusivamente da atividade musical, outros têm mais de uma atividade remunerada. De uma forma ou de outra, todos eles contam com o trabalho na música para compor a renda. (Música é trabalho, voltarei a este ponto mais de uma vez.) Todos eles agem com um dedicado profissionalismo. Todos já estão familiarizados com turnês dentro e fora do Distrito Federal. Mas esta era a primeira turnê deste projeto, a primeira viagem desta formação de elenco, e uma ausência tão importante quanto a de um membro indispensável da banda passaria uma péssima e antiprofissional imagem.

Entre pães de queijo borrachudos e capuccinos exalando os mais artificiais odores que a indústria alimentícia é capaz de produzir, lá estavam Alex, Michele e Arnoldo apreensivos, pensando em maneiras de atacar o problema Iano. Considerações sobre a permanência do faltoso no grupo ficou para outra hora. Àquele momento, um baixista substituto era a missão. Alex disparou seu WhatsApp em todas as direções, inclusive para os organizadores de um dos eventos da turnê (um gesto temeroso). Michele, que é natural do Paraná, também varreu seus contatos em busca de um baixista local. Arnoldo estava ocupado comendo pão de queijo.

É claro que a situação exigia um brainstorm, que, se para nada servisse, ao menos diminuiria as tensões. Mas brainstorm não houve, pois uma solução tapa-buracos pipocou. Alex recomendou o emprego de sampler para substituir Iano. Arnoldo adicionou tempero à ideia, sugerindo que eu subisse ao palco com um baixo desplugado para compor a cena. Caso Iano não desse sinal de vida, nem outro baixista fosse recrutado em cima da hora, esta seria a profilaxia, por mais danosa que fosse.

Eu estava ali apenas para acompanhar a banda, só depois é que uma função de verdade me foi atribuída, ou autoatribuída, a de fotógrafo acidental e cinegrafista amador, já que o fotógrafo e cinegrafista oficial da banda não pode ir. Pelo visto, mais uma função me caia no colo, a de falso baixista. Por precaução, já começava a ensaiar os milhares e tresloucados maneirismos do Iano, para parecer convincente, mesmo que Shane Embury ou Alex Webster fossem minhas referências no baixo. Aliás, ter como referências os baixistas do Napalm Death e do Cannibal Corpse talvez não ajudasse muito a uma banda do cenário indie pop-rock, principalmente porque eu jamais encostei num baixo antes.

Antes do embarque para a Cidade Canção, Iano deu notícias. Dormiu demais, perdeu o voo. Mas disse iria dar um jeito. A tensão do grupo não diminuiu, mas nada havia para ser feito. Embarcamos para Maringá para a primeira etapa da turnê.

O Fim da Picada

Alguns pares de meias, um punhado de cuecas. Cintos? Dois, talvez. Ou apenas um. Casacos? Um no próprio corpo, outro na bagagem. Ou três, Maringá estava bem fria. Livros, itens indispensáveis para viagens, embora papel pese bastante. Computador? Depende. Pares de sapato? Alguns, um que se adapte a todo terreno, outro especial, mais sofisticado. Tudo depende. O tipo de viagem, o destino da viagem, o temperamento e vaidade do viajante. Viajar a trabalho ou para Sibéria ou para Fortaleza produz malas bem distintas. Menos se você for um músico, aí não importa o destino: mesmo que você use apenas uma démodé pochete, um mundo inteiro de volumes e pesos o acompanhará. Não me refiro a gaitistas, claro.

Quando aterrizamos em Maringá, ainda precisamos enfrentar a espera das malas e o resgate dos instrumentos. Se você só precisa de um computador para fazer uma viagem de trabalho, seja gentil da próxima vez que encontrar um baterista no aeroporto. Se escolher uma paixão musical estivesse sob o nosso controle, uma viagem de avião carregando uma bateria ou uma tuba transformaria todo baterista ou tubista em gaitistas. Mas lá estava o Arnoldo, zen como um fauno saciado, carregando troços e aceitando pouca ajuda. Os demais também tinham tralhas. Alex tinha guitarra e pedais para levar e Michele tinha todo o aparato de microfone, cabos e conectores. Não só música é trabalho, como música dá trabalho. Eles levam anos para se aperfeiçoar em seus respectivos instrumentos, alguns anos ainda levarão, infelizmente, para serem melhor remunerados. Enquanto isso, seguirão carregando pedras.

Sobre remuneração, aliás, para meu choque, o baixo valor dos cachês ainda se deve a uma questão cultural, a crença de que música não é exatamente trabalho. Ou um trabalho menor; ou, ainda, decorativo. O menosprezo pelo trabalho do músico não é antiquado como eu imaginava, infelizmente. Quantas churrascarias, pizzarias, casamentos e aniversários os músicos terão de enfrentar até alcançar o mínimo satisfatório de sustento financeiro? Incontáveis. Para qualquer direção no cenário da música que olhemos, o músico sofrerá o mesmo atraso, e não falo só de indie rockers. A profissão de música envolve prática e estudo e mais prática, isso tudo nas horas que não são dedicadas a uma profissão ou a um trabalho remunerado paralelos, relacionados ou não ao exercício musical. Muitos músicos não têm alternativas senão dar aulas particulares para se sustentar. Penso na quantidade de violinistas e pianistas que teriam mais tempo para o aperfeiçoamento musical se não tivessem de passar tantas horas se deslocando de um aluno particular para outro. Ou, além de alunos particulares, apresentações em estações de metrô, semáforos e rodoviárias, e nesses casos eu incluiria os gaitistas.

Antes que seja feita a observação de que toda profissão é assim, que se leva anos para atingir reconhecimento e prestígio em qualquer área, tenho de reavisar que não falo de reconhecimento e prestígio, falo de sustento financeiro básico. Ênfase em básico. Após cinco anos de faculdade, os piores advogados ou engenheiros conseguem com suas assinaturas em petições e projetos o que um músico, depois de décadas tocando nas formaturas desses mesmos advogados ou engenheiros, nem sonha. Uma inscrição na OAB ou um registro no CREA transforma qualquer pessoa, imediatamente, num profissional. A sociedade, tradicionalmente, o reconhece como tal. Um violão embaixo do braço, não, jamais, mesmo que o portador do violão tenha um CRM-OMB (registro no Conselho Regional dos Músicos).

Voltando aos nossos músicos, Alex e Michele têm profissões paralelas, não relacionadas à música. Além de baixista, Iano é ator. Arnoldo, apenas músico.

Quando aterrissamos em Maringá uma van esperava por nós. Depois de tudo isso que eu falei, uma van à espera dos músicos, para a primeira turnê interestadual de uma banda cover, se traduz desta forma: eles são realmente muito bons. Um privilégio, sem dúvida, mas conquistado às custas de muitas cordas vocais calejadas, baquetas quebradas, bumbos e cordas rompidos. O motorista se chamava Jorge, um proativo silencioso e diligente, que foi rebatizado por Alex de Jefferson. Eis o porquê: “Ele tem muito mais cara de Jefferson”, ele disse.

“Jeff, onde tem uma churrascaria boa por aqui? Um restaurante legal pra gente comer”, Alex disse.

“Vou levar vocês numa [churrascaria] boa”, Jeff disse.

Estávamos famintos. Carregamos todas as tralhas na van e deixamos a Jeff a missão de nos alimentar.
A banda ainda não tinha um baixista. Ainda pairava sobre o grupo o fantasma do mau exemplo profissional. Um dos contratantes, o dono do pub onde a banca tocaria em Cascavel, era ele próprio um baixista — o pub inclusive ostentava um baixo autografado por Rodrigo Santos, baixista do Barão Vermelho. Iano provavelmente estaria disponível para o segundo show, um festival de rock em Maringá, mas ainda incerto para o primeiro. A banda ainda estava preocupada e tensa com a ausência do baixista, e eu, se fosse acionado como Iano fictício, ainda não tinha decorado todo o arsenal dele de caretas para minha imitação. Ele é um cara muito expressivo, em cima do palco. Como se não houvesse tensão suficiente no interior da van, Jeff nos presenteia com uma autêntica churrascaria de beira de estrada (embora, tecnicamente, não fosse na beira da estrada), com direito ao famoso e indefectível “teclado de churrascaria” como trilha sonora e sem direito a picanha ou coração de galinha, pois o digníssimo estabelecimento não oferecia estas iguarias. A churrascaria se chamava… O Fim da Picada. (Não estou de brincadeira.)

Almoçamos. Embora a alcatra estivesse deliciosa, a fome parece não ter sido tempero suficiente para a comida ganhar boas avaliações. Mas alimentados estávamos. Prontos para algumas horas de estrada.

A turnê envolveria horas de chão. Maringá, Cascavel e Maringá novamente, porque a segunda apresentação seria no Festival Santo Rock, no Clube Hípico da cidade. Há muito o que fazer durante quatro horas dentro de uma van numa viagem intermunicipal. Palavras cruzadas, sudoku, leitura, crochê, telefonemas, para quem pratica essa arte, e a lista segue. Mas pouco se fez. A primeira hora de viagem foi preenchida com o habitual ânimo de início de jornada. Algumas cervejas, Alex discorrendo sobre Alter Brigde e Audioslave e fazendo contagens de likes no Tinder, Arnoldo fazendo declarações de amor a Ivete Sangalo, Alex, Michele e Arnoldo trocando figurinhas sobre tatuadores bons e baratos.

As demais três horas e pouco foram preenchidas com sono e pachorra. Michele e o namorado ainda se divertiram um pouco mais, com muita saliva apaixonada, e ela, paranaense, explicou a ele um pouco da geografia do lugar, tão diferente do cerrado onde mora o pernambucano. Mas a van testemunhou mais sonos pesados e mal acomodados do que sexo, drogas e rock n’ roll.

Aqueles três dormindo na van, vindo de noites mal dormidas por terem sido usadas em shows anteriores, por terem acordado cedo para o voo, por estarem já cansados com a preocupação de que talvez falhassem na primeira apresentação da turnê, aqueles três, depois de horas de estrada, ainda teriam mais uma atividade pachorrenta para fazer: a passagem de som.

Mais um momento importante na vida do músico. A passagem de som é uma mistura de ensaio do repertório, reconhecimento do ambiente acústico, teste de palco e iluminação, ajuste de instrumentos e de todos os recursos tecnológicos disponíveis para que o show aconteça. O som precisa estar bom para todos, público e banda. Pode parecer óbvio falar isso, mas eles, os músicos, precisam se ouvir muito bem. Esta é uma das coisas mais bonitas na música: é a única linguagem em que todos falam ao mesmo tempo e todos se ouvem ao mesmo tempo. Uma arte comungadora por natureza.
A cada passagem de som, um novo técnico de som, um novo relacionamento para ser construído, mesmo que por uma noite. Essa é uma peça importante para uma boa apresentação. Essencial, até. Tocar flauta, violino ou bongô, numa praça, é diferente de tocar guitarra e baixo com pedais e bateria com samplers. Aí entra o técnico, que acaba sendo mais um membro da equipe de quem estiver sobre o palco. A vocalista, Michele, costuma agradecer aos técnicos de som das casas onde se apresenta, quando eles fazem um bom trabalho. Se a qualidade do som é boa, o trabalho deles não é percebido, o que é uma injustiça. Se é uma merda, todos se prejudicam, a não ser que o artista sobre o palco seja um Tim Maia, que nunca reprimiu uma espinafração a maus técnicos.

O bom funcionamento do componente eletrônico é fundamental. Um Zakk Wylde com uma Gibson Les Paul nos braços não fará a menor diferença para os ouvidos do público se das caixas de som (PA, public address, no jargão dos músicos) só saírem zunidos de marimbondos pentatônicos. Eric Hobsbawm, em História Social do Jazz, diz que essa é uma das marcas próprias do rock, uma inovação exclusiva: a tecnologia que envolveu a eletrificação dos instrumentos. Comparando, em seus desenvolvimentos, essas duas potências da música popular do século XX, o jazz e o rock, Hobsbawm fala que o rock foi o primeiro gênero a fazer uso sistemático de componentes elétricos (no jazz, mesmo na época das primeiras guitarras elétricas, este uso não tinha a mesma amplitude; e quando falo de “primeiras guitarras elétricas” eu me refiro a gigantes como Charlie Christian e Oscar Moore). A formação clássica de um quinteto praticamente independe dessa tecnologia: baixo acústico, bateria, piano, trompete, sax. Só muito depois é que o jazz se preocuparia com essa eletrificação. O rock foi que precisou de mais recursos elétricos, desde o início, pois o que seria dele sem as distorções de baixo e guitarra e seus amplificadores? Para fazer isso tudo funcionar bem, isto é, soar bem para o público, e considerando a acústica própria de cada ambiente, um bom técnico de som é necessário.

Ainda sobre as características fundadoras do rock, Hobsbawm fala sobre a noção de conjunto, outro ponto essencial para o drama dos nossos músicos. Enquanto no jazz, por exemplo, um quinteto é formado a partir do nome do seu líder, no rock o grupo é que é batizado. Não só isso: num quinteto de jazz, o nome de quem toca o instrumento é mais importante do que a presença do instrumento. O famoso quinteto de Miles Davis tinha ele próprio no trompete, John Coltrane no sax, Paul Chambers no baixo, Red Garland no piano, Philly Joe Jones na bateria. Não era uma questão de ter um sax no quinteto, mas de ter um John Coltrane no sax do quinteto. Como diz Hobsbawn, um grupo de rock é “essencialmente uma unidade coletiva, em vez de um pequeno grupo de virtuoses tentando demonstrar as suas habilidades”. Quando uma banda de rock é formada, a banda, como um todo, é o que conta, mesmo que haja lideranças internas. Um Led Zeppelin só foi possível por um amálgama de músicos específicos, mas caso faltasse um daqueles membros a banda continuaria se chamando Led Zeppelin, mesmo que a história sentisse a falta da soma de Page, Plant, Bonham, Jones. Essa noção de conjunto tem exemplos melhores: o Black Sabbath permaneceu sendo o Black Sabbath, mesmo que Ozzy tenha sido substituído por Dio; o Metallica permaneceu o Metallica, mesmo depois de três baixistas e dois guitarristas solo distintos.

Horas depois, tortos, amassados e parcialmente revitalizados do sono na estrada, Michele, Alex e Arnoldo chegaram ao pub Hoolligans, em Cascavel. Da estrada para o mercado, deste para a passagem de som. O lutador do UFC e ex-campeão do Pride Maurício Shogun e a modelo e apresentadora Ana Hickmann estavam no mesmo voo nosso de Guarulhos a Maringá, mas, considerando o dia que tiveram e tudo que os levou até ali, e o eloquente fato de eu os conhecer, para mim as verdadeiras celebridades naquele avião eram Michele, Alex, Arnoldo e a dor de cabeça deles. Cadê o baixista?

“Ué, por que vocês demoraram tanto?”, disse um descansado Iano, já plugado e sobre o palco, esperando os demais membros da banda, passando o som e passando na cara dos demais que o profissionalismo é o último que morre. E que o rock é grupal. Ele dormiu de mais, mas acordou a tempo de dobrar a camisa do Botafogo na mala e pegar um avião para o Paraná. A banda não precisaria de samplers, nem de mim fingindo sobre o palco — justo quando eu já havia dominado a arte da imitação.

Alívio geral. Uma verdade a ser dita é que a banda nunca perdeu o bom humor durante todo este percalço.

O Adam de Apucarana

A Florence Tribute Brasil não era a única banda a se apresentar no Hooligans. Depois dos brasilienses, um trio de nome incerto subiria ao palco para uma tour de force musical que incluiria algumas horas de cover singing. O prato principal do menu deste trio era Maroon 5. Mas haveria muito mais que isso.

O pub Hooligans tem uma estrutura invejável. Ou invejável para os padrões brasilienses. Curioso que a capital do rock não tenha um estabelecimento tão preparado como aquele de Cascavel. Um pub com dois ambientes, palco acortinado, entrada separada para músicos, um camarim espaçoso e outro conversível e banheiros exclusivos para os artistas. Sem contar com toda a estética verde de leprechaun, que é o mascote inapelável de um pub assim. De todas as características da casa, a mais inusitada foi um certo puritanismo: depois do show, tomando cerveja e relaxando, Michele não pode ficar sentada no colo do namorado, a casa proíbe esta intimidade. Ou puritanismo, ou cuidado excessivo com os móveis, não sei dizer.

A casa costuma receber nomes autorais locais e nacionais (Scalene já se apresentou lá e participantes de The Voice e congêneres costumam aparecer), mas a programação da casa é quase exclusivamente composta por bandas covers, tanto as descaracterizadas, que tomam mais liberdades musicais e estéticas em relação ao grupo original, quanto as caracterizadas, que emulam o conjunto original em tudo, inclusive esteticamente. Ou principalmente.

Sobre aquele palco, já pisaram o Kiss de um Gene Simmons de língua curta. Os Strokes de um Julian Casablancas menos cosmopolita (e menos milionário, suponho). Os Red Hot Chilli Peppers de um Flea sem molejo. Os Mamomas Assassinas de gente viva. O Pink Floyd de jovens imberbes. O Maroon 5 do Adam de Apucarana. Para quem a Florente Tribute Brasil abriria a noite.
Depois das passagens de som, ambas as bandas se encontrariam na churrascaria (sim, mais uma), que serviria arroz com batatas fritas para os músicos de Brasília. Iano, vegetariano, ganharia um par de ovos fritos para acompanhar. O acordo local era que a churrascaria Martingnoni iria abastecer os músicos de ambas as bandas com pratos executivos decentes para enfrentar a noite de rock. Feijão e carne deveriam estar na bandeja, mas a comida demorou tanto que a Florente Tribute Brasil só tempo tempo de comer alface, arroz e batatas fritas, com chope, que não estava incluso. Porém, a comida demorou o suficiente para chegar na hora em que o Adam Levine de Apucarana apareceu. Talvez esta tenha sido uma justiça divina, aquele Adam precisaria de muita sustância.

Os brasilienses saíram da churrascaria para produzir o visual, e, exceto pela albumina do Iano, nenhuma proteína foi ingerida. Ambas as bandas estavam hospedadas na mesma pousada, outro luxo de turnê interestadual. Na sala da hospedagem, esperávamos eu, Arnoldo, Alex e o Adam de Apucarana os demais membros ficarem prontos. Eu estava mais presente de corpo, com a mente perdida em alguma página de Boswell ou em algum acorde do Burzum, Arnoldo, eu não sei o que ele fazia, mas Alex e o Adam de Apucarana conversavam, e aos poucos esta conversa ganhou minha atenção.

O Alex que abriu estas reminiscências… is quite a character. Quase vinte anos atrás, ele começou a tocar guitarra. Depois, investiu noutro instrumento, a voz. Hoje é guitarrista no Florence Tribute Brasil e vocalista na Heat e produtor de ambas, das quais cuida com muita dedicação. Fazem muito sucesso com as mulheres os homens de pele bronzeada, olhos verdes, dentes brancos e braço tatuado, e Alex preenche estes requisitos, e mesmo uma incipiente calvície é incapaz de tirar o foco destes atributos. Ele não é um virtuose dos palcos, não é pirotécnico, nem cantando nem tocando, embora faça ambas as coisas bem. Faz um estilo mais contido e técnico, mas nem por isso menos voluntarioso. Eu já o vi mais de uma vez descendo do palco, microfone na mão, com a missão de entusiasmar a audiência. A ele, outros músicos e a mais variada casta de fãs já dedicaram diversos epítetos. O Adam Levine do Distrito Federal, talvez por fazer músicas do Maroon 5 com a Heat. O Chris Cornell do Cerrado, talvez por ter o americano com um dos seus ídolos — o primeiro CD solo de Cornell está entre os seus prediletos — , ou talvez pelos olhos verdes. Ninguém chegou ao ponto, ainda, de chamá-lo de o “Lemmy Kilmister do Planalto Central”, o que seria uma prova irrefutável de sua beleza, mas ele impressiona (também) pela aparência.

Egresso de um matrimônio e ainda ruminando as feridas da separação, Alex, o Chris Cornell do Cerrado, foi adotado pelo Tinder e até àquele momento ganhava um super like atrás do outro. Dias antes de iniciar a turnê, ele já havia mudado sua localização no aplicativo para as cidades paranaenses que visitaria, enfileirando uma grande lista de… contatos. E foi assim, num raro momento de seriedade — ele é bem goofy a maior parte do tempo — , que Alex falava sobre si e sobre seu ex-casamento, já pronto mas descalço, com uma Budweiser na mão, sentado ao lado do Adam de Apucarana, que estava vidrado no brasiliense. Isto foi o que me chamou a atenção dois parágrafos acima.

Se eu pudesse fazer um daqueles memes “Namore com alguém que te olha como…” a partir desta turnê, o complemento seria “como o Adam de Apucarana olha para o Cornell do Cerrado”.
Aquele foi o único momento, mesmo que breve, de vulnerabilidade e seriedade não disfarçada do Alex. Nem quando a banda estava nervosa pelo possível falta de um baixista ele pareceu assim. Como as feridas são ótimos agentes de ligação entre seres humanos, o Adam de Apucarana também passava pelo mesmo, ainda cicatrizava pelo fim dos seus relacionamentos. Não só o fim do relacionamento pessoal, mas o fim do seu relacionamento musical. Ele era membro de uma banda cover de Maroon 5 que também havia se separado. Aquela noite seria a primeira apresentação dele com novos integrantes, que se resumiam a dois, ambos apucaranenses: o baterista, com quem já tocava na banda anterior e que escolheu o lado dele na treta, e o baixista, cuja primeiríssima apresentação sobre um palco seria naquela noite. Ao Adam de Apucarana coube a dupla função de cantar e tocar guitarra. Que homem.

Considerando este pequeno contexto, não era de se espantar o encanto que Alex exercia sobre ele. Pois lá estava, ao seu lado, naquele sofá manchado de orgias antigas, 1,83 metro de Adam Levine made in Brasília, abrindo o coração, provocando sintonias involuntárias tanto pessoais quanto musicais com o Adam de Apucarana. A sintonia cresceu e então a música fez a sua parte. O apucaranense convidou Michele para ser sua Christina Aguillera em “Moves Like Jagger” e convidou a ambos para cantaram com ele “This Love”, o primeiro hit do Maroon 5.

“As mina pira quando eu canto Maroon 5, imagina elas quando ouvirem o próprio Adam Levine cantando”, ele disse, apontando para Alex, e rindo, sozinho. Uma observação curiosa essa do Adam de Apucarana, considerando que ele encarna muito mais o personagem Adam Levine que Alex, a ponto de ter a mesmíssima tatuagem do Adam original, um tigre ao longo da dobra do cotovelo direito, e de usar, durante o show, uma manga de tatuagem falsa no braço esquerdo, mimetizando as tatuagens de verdade do Adam de verdade. Como Iano observaria no dia seguinte, usar a tatuagem falsa era algo mais chocante que ter a cópia tatuada de um tigre.

Havia algo de fascinante neste… fascínio. Eu tive uma oportunidade que, até agora, eu não sei se soube aproveitar, como escritor. Um homem, um músico, fascinando por um artista famoso e mimetizador deste mesmo artista, ferido e seguindo em frente, encontra, numa noite, vindo de outra cidade, outro homem, outro músico, também ferido, também seguindo em frente, que não tem gana alguma de mimetizar o artista famoso, mas que goza de muito mais recursos para isso. Talvez este episódio mereça um ensaio próprio, que ficará para outra hora, porque agora temos um show para fazer.

Relato de uma queda

Jefferson-Jorge estacionou em frente à pousada e a Florence Tribute Brasil embarcou. A estrutura do Hooligans, como já disse, contribui muito para a vibe de artista do rock: ninguém precisou cortar caminho por meio do próprio público para chegar ao palco, havia uma entrada própria para a banda e a cortina, cumprindo seu papel, manteve a surpresa e o encanto até o último momento. Um artefato tão simples faz toda a diferença, tanto para quem está sobre o palco quanto para quem está olhando para ele — o clichê da “quarta parede”. Eu tenho acompanhado esses músicos há algum tempo e não ter de vê-los tirando dúvidas sobre setlists, fazendo uma última checagem na afinação dos instrumentos ou resolvendo tretinhas de última hora foi confortador. Eles fizeram isso tudo, porque há pedais para conferir, in-ears para colocar, microfones para testar, mas ninguém precisou ver isso tudo. A cortina abriu, a banda começou a tocar.

Eles costumam começar os shows com ”Rabbit Heart (Raise It Up)”, uma música que eu nunca ouvi com a Florence + The Machine original até escrever este parágrafo. Talvez seja o hábito, mas a maneira como estes brasilienses a tocam tem mais meu apreço: eles dão mais força à música, mais “punch”, como já disse, e a vocalista, Michele, tem mais potência vocal que a Florence Welch.
Pode parecer pretensioso, ou mesmo arrogante, dizer que a música de um artista fica melhor com outro. Mas o que mais vejo são exemplos disso. Claro, não me refiro a Caetano Veloso cantando Nirvana, que ficou um horror, nem a Adele remixada por DJ’s infames, outro horror musical, nem a Chris Cornell cantando “Billie Jean”, um despropósito. Estou me referindo a Pantera cantando “Planet Caravan”, do Black Sabbath. Metallica estilizando “Turn The Page”, de Bob Seger. Também falo de Paula Fernandes finalmente conferindo à “Nothing Else Matters” a breguice que essa música, também do Metallica, merecia desde o início. Falo, principalmente, de Tori Amos subvertendo todo o universo conhecido e fazendo uma versão tétrica de “Raining Blood”, do Slayer, incorporando toda a morbidez, frieza e rancor da letra de Kerry King e Jeff Hanneman.

Quase todas as músicas do repertório da Florence Tribute Brasil eu mesmo só ouvi com Michele, Alex, Arnoldo e Iano, não com a Florence + The Machine. Neste ponto, volto àquela noção de “unidade coletiva” de Hobsbawm que mencionei acima. Uma voz potente, um guitarrista competente e na cozinha um baterista e um baixista porradeiros fazem deste grupo cover menos mimetizador e mais estilizador. Não é uma questão de transposição, como, por exemplo, o trabalho dos excelentes instrumentistas Ricardo Vignini e Zé Helder, que tocam clássicos do rock na viola caipira, como “Voodoo Child”, de Jimi Hendrix, e “Smells Like Teen Spirit”, do Nirvana. É um trabalho de reestilização mesmo, porque estes nossos personagens permanecem sob a aba do indie pop-rock, mas com sabor próprio.

O show foi bom, a casa gostou, o público curtiu, os músicos arrasaram. A primeira apresentação da banda foi um sucesso, inclusive por um fato inédito: acostumada ao palco desde sempre, a vocalista Michele nunca havia caído sob os holofotes. Era um receio dela há anos, que parecia muito maior enquanto era um medo particular. Ela caiu de bunda no palco, tirou os sapatos, se levantou e continuou cantando durante tudo isso. “Não foi nada de mais”, ela disse, decepcionada com a pouca gravidade da coisa.

Quando o show deles acabou, Michele e Alex subiriam ao palco novamente para prestigiar o convite do Adam de Apucarana, que se mostrou um herói do entretenimento noturno. Cantando e tocando guitarra, à frente de um trio polivalente e estreante, o homem cantou Maroon 5 até não poder mais, depois emendou num repertório típico da música tocada em balada, todos os hits esperados e multivariados: AC/DC, Titãs, Los Hermanos, Metallica, O Rappa, Legião Urbana, Capital Inicial, Dire Straits, U2, Raimundos, Rage Against The Machine, Paralamas do Sucesso, Skank, Bon Jovi e mais gente que eu não lembro. Ainda bem que ele estava bem alimentado.

A noite estava fria e a banda ficou no pub, aquecendo o corpo com álcool e confraternizando com fãs atiradas, exceto Alex, que já tinha uma tinderiana à sua espera. Toda a banda é bonita, os quatro membros despertam paixões por onde passam. É um combo poderoso, o sex appeal de serem músicos e de serem como são. A presença do Alex, a malandragem do Iano, a nonchalance do Arnoldo e o carisma efervescente da Michele. “É a banda mais bonita em que já toquei”, disse Iano em um dos ensaios pré-turnê.

Eles continuariam a confraternização coletiva na pousada, junto com o trio do Adam de Apucarana, mas, a julgar por relatos, o único rockstar a contribuir com a má imagem do sofá da sala e a dormir acompanhado foi Michele, que arrastou o namorado mais cedo para o sofá da pousada.

PARTE II

“Quero cerveja, papai”

É uma verdade universalmente admitida que um guitarrista solteiro, na função de produtor de uma banda de indie pop-rock, deve estar precisando de… filhos.

Durante a confraternização, o pub disponibilizou apenas um cartão de consumação, no nome do Alex, que ficou responsável por prover álcool para a banda. A astrologia parece ter desempenhado algum papel nisso: um canceriano com ascendente em Capricórnio, mãe e pai numa mesma pessoa. Como provedor, Alex não deixou faltar cervejas e destilados para os colegas e tanto cuidado e atenção lhe renderiam o apelido de “papai” por parte dos seus filhos Arnoldo e Iano. Este papel o papai Alex não abandonaria pelo restante da viagem. “Quero cerveja, papai”, diziam seus filhos, sem parar. “Eu não gosto quando você bebe, papai”, também diziam, aos primeiros sinais de exagero paterno.

A manhã seguinte começaria com o pai Alex pondo ordem na casa e acordando a todos em cima da hora para não perderem o horário da van. “Eu não acredito que vou ter de ser o pai de vocês mesmo. A gente tem de sair agora!”, disse, mais impressionado com a veracidade da função que ocupava do que com o atraso dos demais (o namorado da vocalista foi quem mais se atrasou). Cada um da trupe estava exausto, à sua maneira, e todo mundo se arrumou às pressas para cair na estrada. Algumas horas de viagem de volta à Maringá, para a passagem de som às 19h, tendo antes de parar em qualquer bodega para comer feijão com arroz.

Pouparei você de mais essas horas de van. O quadro era o do que se espera: gente dormindo troncha, paradas para xixi e lanchinho, mais gente dormindo troncha. Pelo menos trilha sonora era boa: The Black Angels.

A apresentação em Maringá seria no Festival Santo Rock, que acontece anualmente desde 2012, no Clube Hípico de Maringá. Dois palcos, muitas bandas, vários gostos. A maior atração do palco principal, mas não a última, era o desgastado Ira!. Fechando as atrações deste palco, outra banda polivalente, a Putz Hits Band, tocando aquela mesma salada mista do Adam de Apucanara. Já a atração final do palco externo seria a banda local Coyote Verde, um quinteto de ótimos instrumentistas e barbas chamativas, que tinha no repertório músicas próprias e de Bruno Mars, Muse e Cake. A Florence Tribute Brasil seria a penúltima deste palco.

Desta vez, um pouco mais de estrutura esperava os músicos. Eles ficariam hospedados num hotel, com direito a café da manhã e quartos separados, um para Alex e seus dois filhos, outro para Michele e o namorado. Quartos com crucifixos e exemplares do Novo Testamento.

Exceto pelo Ira!, as demais bandas tocariam mais covers do que músicas originais, ou exclusivamente covers, como é o caso dos nossos rockeiros. Assim como a do Adam de Apucarana na noite anterior, a madrugada no palco principal seria toda uma tour de force da banda Putz, que fecharia a noite tocando a Metallica e AC/DC. Era quase o mesmo setlist. Já ouvi alguns músicos se queixarem de que o repertório padrão é saturado — e é mesmo. “Pescador de ilusões”, “Enter Sandman”, “Ana Júlia”, “Killing In The Name”, “Mulher de Fases”… Refrescar este repertório dependeria de uma renovação que demora alguns anos, ou décadas. Ou seja, as músicas a compor o próximo repertório diferente daquele já chegariam saturadas pela presença no mainstream. É um beco sem saída. Mas não é só a consagração popular que faz essas músicas serem tocadas tão exaustivamente. Se fosse apenas o elemento popular deste apetite musical, o som mecânico seria suficiente.

Não, não é apenas o apelo popular, é o apelo de serem músicas consagradas tocadas ao vivo. Que a música é uma arte comungadora, já conversamos sobre isso parágrafos atrás, mas me referia a quem faz a música. Agora me refiro a quem a ouve. Menos em se tratando de Lana Del Rey, a música ao vivo é sempre mais viva e mais penetrante. É o caso de todas as bandas citadas aqui que prestigiam a música de outros artistas. Não vejo como um fã trocaria a apresentação de uma banda pela da sua banda cover, mas a banda cover paga um tributo artístico que vai além do status de ser meramente vicária. É, mais uma vez, uma questão de comunhão.

Desde que passei a acompanhar a Florence Tribute Brasil aqui no Distrito Federal que tenho compilado, inadvertidamente, algumas reações de fãs da Florence Welch quanto à Michele. Se o fator ao vivo conta para a comunhão do público variado, conta ainda mais para o público personalizado de uma banda específica.

Sob um clima hostil

Além de cantar com Florence Tribute Brasil e Heat, Michele tem pelo menos três outros projetos fixos. Um para festas corporativas, casamentos e aniversários, e outros dois, La Belle e Michele Chitko & Banda, aquele dedicado à música dançante tanto em português quanto em inglês, sobretudo o soul, e este dedicado às divas do pop rock internacional e nacional. Madonna, Kylie Minogue, Sia, Anitta, Beyoncè, todas elas. Ela consegue cantar qualquer coisa, de Led Zeppelin a Caetano Veloso, menos o death metal que o namorado tanto pede.

Michele é loira. Oxigenada. Para esta turnê, tonalizou os cabelos em vermelho, um aceno à ruivice da Florence Welch. No mais, nada na performance desta cantora lembra a da inglesa. Sobre o palco, ela poderia ser, hoje em dia, uma mistura de Axl Rose com Elis Regina — ela mesma assume ter sido a Pimentinha uma de suas primeiras inspirações. Mas nem sempre foi assim, pelo que dizem quem a conhece há mais tempo. A julgar pelo que já ouvi clandestinamente, Michele parece ter passado por alguma metanoia no último par de anos que a deixou melhor sobre o palco, mais explosiva e mais teatral, e é deste traço que homens e mulheres lembram quando a encontram na rua. “Você é quem faz a Florence, não é?”, perguntou um fã da banda inglesa. “Você arrasa”, completou. Este tipo de interação já aconteceu várias vezes, encontros aleatórios em bares, shoppings, padarias.
Durante os shows da Florence Tribute Brasil, a interação costuma ser mais intensa, por conta do público em questão. Com tantos projetos distintos, natural que ela tenha mais de um tipo de público para satisfazer. Da impessoalidade do público em festas de réveillon à intimidade instantânea dos fãs de Florence Welch. Mas o público é por quem ela tem afeto genuíno é o LGBT, que compõe a base de fãs da Florence + The Machine e que é o mais assíduo em dois de seus projetos paralelos, o La Belle e o Michele Chitko & Banda. É o público mais fiel, o mais animado e o mais dedicado. Também é o público que menos a vê como objeto, um ponto sensível desta narrativa. Porque pode ser ofensivo cantar em confraternização de empresas de tecnologia, com todo aquele exército heteronormativo de camisas polo azuis e sapatênis, sobretudo se a cantora não quiser cantar axé ou música sertaneja (ela não faz ambos os gêneros, nem jovem guarda). Ofensivo por ser uma mulher talentosa exercendo uma profissão, mais uma vez, pouco reconhecida. Eu nunca vi alguém oferecer mil dinheiros para um dentista “extrair um dente agora, da minha boca, sem doer nada, quero ver!”, mas vi músicos passarem por isso. A própria Michele já sofreu isso, e ofertaram a ela muito menos que mil dinheiros para cantar a capela durante um happy hour. É uma ofensa ao talento e à profissão. Qualquer oferta é feita e sob quaisquer condições, porque qualquer coisa compensaria aquilo, que mal é considerado trabalho. É o mesmo drama de modelos iniciantes, atores e atrizes, designers, diagramadores, redatores e revisores e todo o leque de profissões ligadas à cultura, às artes e às humanidades.

Em dois shows desta banda, em cidades diferentes, numa delas durante um festival de rock, Michele foi a única mulher, em ambos os lugares, a subir no palco para trabalhar, a única musicista. Isto é eloquente o suficiente sobre o sexismo em nossa cultura e na cultura musical. Também é eloquente sobre o tipo de mulher que ela é, uma mulher que começou a cantar aos 15 anos em churrascarias da sua cidade natal, União da Vitória, uma pequena Bucóvina sob um clima permanentemente hostil: quente ou fria, com sol ou com chuva, a cidade sempre é úmida e abafada. Para estar sobre aquele palco, no seu estado de origem, ela havia enfrentado muita coisa, inclusive o assédio reiterado a que estão sujeitas — e não deveriam estar — as artistas de palco. Um ser humano resiliente, um fato indiscutível por tudo que já soube até hoje sobre ela.

Quanto ao show em Maringá, descrever a performance da banda seria um sacrilégio. Era preciso estar lá pra ver. Todos adoraram. Eles arrasaram. Alguns fãs histéricos da Florence Welch pediram músicas e cantaram junto. Nem o descompasso do sampler numa das músicas, causado pela trepidação das caixas de som no computador do Arnoldo, tirou o brilho da noite. Nem o Ira!, que tocava ao mesmo tempo que eles no palco interno, roubou seu público inicial. Nem a queima de metade das caixas de som, no último terço da apresentação, ofuscou o talento dos artistas. Nem o frio, que afugentou boa parte do público presente, fez o quarteto esmorecer. Artistas incríveis.

A mulher mais gostosa do mundo

Acabou o show, a banda guardou os instrumentos. Michele foi recebida atrás do palco com aplausos, abraços e pedidos de foto, ela é sempre simpática e receptiva com o público. Depois de fotos e trocas de cartões de visita, ela sumiu com o namorado. Pai solteiro, Alex foi com os filhos aproveitar a noite e prestigiar a banda Putz, que varou a madrugada cantando de tudo.

Aqui, mais uma vez, um encontro de espelhos que eu mesmo não teria imaginado fosse eu o roteirista desta viagem. Alex e Arnoldo, alcoolizados, viram o Alex do Futuro na figura do vocalista da banda Putz. Ambos “vistosos” e marrentos, ambos de olhos verdes e cantores (Alex também canta, lembra?). Alex via a si mesmo no futuro, porque, aparentemente, seu reflexo era mais velho. Curiosamente, o Alex do Futuro se apresenta da mesma maneira como este Alex é chamado pela mãe, “Ale”. Muitas coincidências. Não sei se o choque deste encontro foi ou não motivador para a crescente ingestão de álcool, nem o próprio Alex lembra se foi, mas mais álcool foi consumido.
Como se este encontro não houvesse sido o suficiente para processar, quando o reencontrei em algum momento em frente ao palco principal, o Terror do Tinder, o Chris Cornell do Cerrado, o Adam
Levine do Distrito Federal, Alex disse ter encontrado “a mulher mais gostosa do mundo”. Que lhe deu um fora sem clemência. Ela estava lá pelo Alex do Futuro, ela disse, numa outra abordagem malsucedida do Alex do Presente.

Pelo resto da madrugada e até o café da manhã no hotel, ele repetiria que o “toco” fora justo, visto que a moça era “a mulher mais gostosa do mundo”, uma qualidade que Iano, Michele e o namorado não conseguiam enxergar na anônima, que não se comparava a mulher alguma com quem o grupo já o tivesse visto e ele mesmo concordaria com este juízo depois de escoar o álcool do sangue. Mas ele ainda iria beijar na boca. “Questão de honra!”, dizia.

Horas depois, depois de outras hesitações, uma guerreira cubista lavou sua honra quando o sol já iluminava o clube.

Alex, Iano, Michele e o namorado tomaram café juntos e já se despediram. O irmão da Michele iria casar, ela e o namorado partiriam para União da Vitória depois de uma soneca. Alex e Iano tinham um voo para Brasília em algumas horas. Permaneceriam acordados e alcoolizados o quanto conseguissem.

Arnoldo estava sumido havia tempos. Uma fã motorizada o capturou. Alguém tinha de por em prática o lema eterno: sexo, drogas e rock n’ roll.