9 de julho de 2008

Georges Perec

Quando cheguei em Brasília, 1996, a primeira amizade que fiz e o primeiro lugar com que me identifiquei foram um bibliófilo e uma livraria. O bibliófilo, Senhor L., anos depois se tornou um dos donos dessa livraria, a Livraria P., e não foi à toa. De cliente passou a vendedor. Atendia aos compradores, organizava as estantes, restaurava os livros. Restauração, por sinal, profissional, ia muito além de fita Durex e cola Tenaz. Depois, chegou a uma espécie de gerência. À gerência foi somada a posse da boca. Quanto à gerência, ainda hoje exercida, o cargo inclui as famosas compras. Não disse antes, mas a Livraria P. é um sebo. Sempre vão lá despejar livros. Raramente há doações, frequentemente há compras. Com elas, aquelas compras especiais, às vezes desalmadas.

Explico. Melhor, vou dar um exemplo. Sabe aquele filme O Últmo Portal? Em inglês é The Ninth Gate. É do Polanski e foi inspirado no livro O Clube Dumas, que não li, do Arturo Pérez-Reverte. No filme, Dean Corso é um livreiro, um caçador de livros raros. Um mercenário, na verdade. Um certo senhor o contrata pra ele verificar se uma certa cópia de um certo livro é autêntica. O que interessa ao que vou dizer é a primeira cena. O Corso examinando uma biblioteca particular, avaliando o quanto pode pagar por ela aos ansiosos vendedores, que não são os donos de fato dos livros. O dono, um velhote preso a uma cadeira de rodas. Provavelmente terá sido um derrame, não lembro o que o acometeu, nem se isso foi mencionado no filme. Ele não anda nem fala. É desse jeito que ele vê o Dean Corso dizendo que não compraria a biblioteca, mas que levaria o Dom Quixote, numa edição inestimável, por uns milhares de dólares, o que pareceu ótimo aos vendedores, parentes do velho, mas foi totalmente desumano, desonesto e cínico. Aquela edição não tinha preço. O Corso foi embora com ela debaixo do braço, na maior naturalidade, sem se sentir nem um pouco incomodado com os olhos marejados do velho, que viu toda a sordidez da venda do raríssimo Quixote pelos parentes sem poder fazer porra nenhuma. Esse é um exemplo de compra desalmada. Vi várias dessas ao vivo.


Não só vi como participei de algumas. Evito contar assim, na web, porque é queimação. Sou um pai de família, veja bem. Não vou confessar crimes livrescos pesados, só os leves. Isso de pilhar bibliotecas particulares por morte, doença e incapacidades afins é cruel. Chegava às vezes ser diabólica, porque também envolvia expectativas. “Acabei de saber que o Senhor T. foi internado. Tá em coma. A biblioteca dele é fantástica...”

Trabalhei lá na Livraria P. também, já o disse num post anterior. Primeiro e mais longevo emprego. Continuo frequentando o lugar. Faço dívidas lá e tudo. Mas o olhar de livreiro, por mais cruel que seja, permanece, como constatei involuntariamente na última visita que fiz à livraria.

Fui lá trocar idéia, bater papo. Vi um tal de Sparkenbroke, um romance, de um tal de Charles Morgan, traduzido pelo Mário Quintana, publicado pelo extinto Circulo do Livro. Nunca soube quem é o sujeito. Só li uma citação a ele, brevíssima, num romance do José Geraldo Vieira. Esse Sparkenbroke meio que me perseguia em todos os sebos. “Esse livro é bom?”, perguntei ao Senhor L. “Olha, sei não, nunca li. Mas o Senhor F., lembra dele?, dizia que era muito bom”, respondeu. “Sernhor F...”. Este senhor, nunca conversamos. Sempre o via lá, mas o único contato que tivemos foi, veja você, uma compra. Ele comprou dois livros meus, Paidéia e um do Deleuze, Sade e Masoch. “Ele tá vivo?”, perguntei. “Não, morreu. Enfisema.”, respondeu Senhor L. Aí perguntei baixinho, meio tímido: “E a biblioteca dele...?”

Mas vou falar agora da livraria. Frequentar uma livraria cujos donos e empregados entendem e gostam de livros é outro mundo. Eles sabem o que o cliente quer mesmo que ele não saiba. É muito diferente, e isso você já deve ter sentido na pele, de chegar numa Siciliano apressado, pedir O Príncipe, do Nicolau, e vendedor lhe entregar O Pequeno Principe, do Antoine. Ou lhe entregar O Monte Cinco, no lugar de A Montanha Mágica. Ou ainda, como aconteceu comigo, lhe entregar O Demônio e a srta Prym em vez de A narrativa de A. Gordon Pym. Lá, na Livraria P., eles entendem do assunto. Essas coisas nunca acontecem.

Entendem, e muito, mas isso não os livra de alguns deslizes. Todo mundo “gafeia”. Graças a uma gafe dessas enriqueci minha biblioteca. Este, na verdade, é que é o assunto deste post. Vamos a ele.

A Livraria P. é organizada pela ótica dos bibliófilos. Além das classificações rotineiras, como História, Filosofia, Literatura Nacional e tal, há as específicas, próprias de sebos, como Primeira Guerra Mundial (em História e em Militaria), Romantismo (em Literatura, tanto Nacional quanto Estrangeira, e em Filosofia) e por aí vai. Preconceitos bibliômanos, inclusive, participam da catalogação dos livros. Isso fica visivel, escancarado, nas estantes Romances Traduzidos, de um lado, e Clássicos, de outro lado, bem distante.

Na Clássicos você pode imaginar o que tem. Ovídio, Virgílio, Homero, Dante, Camões, Milton, Goethe, Cervantes e os romancistas, como Dickens, Fielding, Austen, Flaubert, Hugo, Balzac e lá vai o trem. Na mesma Clássicos há uma subcategoria, Clássicos do Século XX. Os nomes de sempre. Mann, Kafka, Proust, Faulkner, Guimarães Rosa, Céline, Joyce e tal. Antes que eu esqueça, Machado de Assis tem uma estante própria.

A estante Romances Traduzidos também é fácil. Scott Turow, Stephen King, Robert Ludlum, Danielle Steel, Rex Stout... esse pessoal. Embora o primeiro romance que li, aos 12, ter sido O Dilema de Trevayne, de Jonathan Ryder, um dos pseudônimos do Ludlum, eu evitava passar por ali.

Evitava porque tenho outras prioridades. Uma delas, A Vida – Modo de Usar, de Georges Perec.

Todo mundo fala desse livro. Paul Auster, Ivo Barroso, Italo Calvino. Só elogios, aliás. Li um conto e uma novela do cara, achei ótimos. Aí o verbete dedicado ao livro na onipresente Wikipedia decretou que eu tinha de ter essa porra.

O problema é que ele não existe. Quase me sinto como num conto dele, A viagem de inverno, procurando um autor que não existe. Sites da Companhia das Letras e da Livraria Cultura, nada. Próxima parada, Estante Virtual. Mas não acreditei no que vi. Clique na imagem.


Já’stava quase me convencendo de que tudo isso era mentira, que eu tinha inventado, que esse livro só existia na minha cabeça. Alguma paranóia, coisa do gênero. Daí fui me endividar na Livraria P., superar a coisa toda com outros livros. Era um sábado. Quando cheguei em casa da livraria, minha esposa me disse alguma coisa que eu suponho importante. Eu não lembro, como se vê. Mas lembro o que eu disse quando cheguei. “Aconteceu um milagre, meu amor. Milagre!”

Na famigerada estante Romances Traduzidos da Livraria P., achei A Vida – Modo de Usar. Meu querido livreiro, Senhor L., não sabe como o livro foi parar ali. Sem dúvida uma gafe, no mínimo.

O livro não foi lido, aliás. Não há nele nem carimbos, nem marcações. A lombada está intacta. Daí vem o mais intrigante: é impossível rastrear a que biblioteca ele pertencia.

Um comentário:

Hélio Pariz disse...

cheguei até aqui pelo teu texto sobre capas de livros de 20/04/11. Agora, este texto aqui é um primor, uma delícia de leitura que se encaixaria no famigerado rótulo "autobiográfico" de muitos bibliófilos como eu. Acertou na mosca! Abraço!